segunda-feira, 31 de março de 2014

Ação Popular Tributária é garantia constitucional

A Ação Popular se originou no direito romano, ao “se atribuir ao povo, ou a parcela dele, legitimidade para pleitear, por qualquer de seus membros, a tutela jurisdicional de interesse que não lhe pertence uti singuli, mas à coletividade”[1] e assim, foi recebida “desde a Constituição de 1946”[2], embora houvesse controvérsia — também na vigência das Cartas Magnas de 1967/9 —, quanto à expressão de “patrimônio público”[3].
A Constituição Federal (CF) de 1988 alterou esse quadro ao conferir maior ênfase aos meios diretos para o exercício da cidadania[4], o que acarretou a ampliação do objeto da Ação Popular, pois embora mantida a defesa do erário — expressamente estendida a qualquer entidade de que o Estado participe —, essa passa a abarcar os elementos culturais e históricos do patrimônio público[5], mas também ao meio-ambiente — bem de uso comum do povo —, daí a influência dos princípios republicano e da soberania popular[6], sem prejuízo à sua faceta instrumental — essa orientada ao controle judicial dos atos administrativos[7] —, no duplo aspecto preventivo e repressivo[8], para que evite ou, então, sejam ressarcidos os danos patrimoniais[9] e, finalmente, para que observada à moralidade administrativa[10] — diretriz que tem no governo honesto atributo indispensável[11] —, daí porque imbricada com a defesa dos interesses difusos[12].
Tais parâmetros devem ser considerados na análise dos requisitos da Ação Popular[13], cujos contornos se encontram no art. 5º, LXXIII da CF, sem prejuízo, todavia, dos demais valores constantes do caput desse dispositivo, depois desdobrados nos seus incisos e parágrafos — em especial no seu parágrafo 2º[14] —, e, mesmo, com outros princípios e normas magnos e, dentre eles, o da legalidade, cuja tessitura, todavia, não mais se contém numa visão meramente formal, face à influência da moralidade administrativa, inclusive como parâmetro para o reconhecimento do Estado de Direito Democrático.
Assim, com base na interpretação sistemática[15], não existe maior dificuldade em admitir que a Ação Popular possa assumir um enfoque tributário, o que, porém, só se justifica como um “corte metodológico”, sem desprezo à unidade do Ordenamento Jurídico [16], daí porque face à supremacia da Constituição[17], os conceitos magnos submetem quaisquer definições legais[18] e, dentre elas, aquelas constantes Lei da Ação Popular (LAP).
De qualquer sorte, observadas as ficções e/ou presunções[19] aplicáveis ao assunto — aquelas constantes dos arts. 2º e 4º da LAP —, se percebe que essas se mostram ajustadas ao princípio que veda o enriquecimento sem causa — também pertinente ao regime jurídico administrativo[20] —, pois expressam a presença dos requisitos da ilegalidade e lesividade, daí porque autorizadas a emprestar efeitos exacionais à Ação Popular[21], nos casos de anistia concedida com afronta à isonomia[22] ou isenção com desrespeito à legalidade — porquê veiculada por decreto[23] —, o que evidencia a ausência do indispensável pressuposto de direito[24] ou, então, propriedades antiexacionais — faceta que a aproxima mais de uma garantia individual do cidadão —, quando manejada para anular ato destinado a obrigar “ao recolhimento de tributos indevidos”[25] ou, ainda, em face de instrução normativa, que, em ofensa à lei[26], obsta à compensação, ao invés de cumpri-la[27], em acinte aos limites da competência[28] e, mesmo, ao motivo invocado para sua prática[29], o que caracteriza desvio de finalidade.
A despeito disso, segundo o Parecer PGFN/ CRJ 1087/2004 seria possível à anulação de decisões administrativas irreformáveis por razões de legalidade, juridicidade e erro de fato, face à inaplicabilidade da garantia da coisa julgada — e, mesmo, do controle de constitucionalidade no âmbito interno da Administração —, o que, segundo se afirma, não traria prejuízo ao direito de petição e ao contraditório[30].
Tal debate, todavia, volta à tona face ao ajuizamento de ações populares contra o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf)[31], para contrastar a interpretação por aquele conferida em determinados casos concretos[32], o que, entretanto, esbarra na premissa de que “o direito de ação não é incondicionado, como é o direito constitucional de petição[33], daí porque indispensável à legitimidade de parte[34] e o interesse de agir na modalidade de adequação[35], pois, a ação popular não pode ser afastada da cidadania, dos “ideais da democracia participativa”[36], mas também da satisfação de interesses difusos ou primários, que não se confundem com os interesses meramente arrecadatórios e/ou, secundários, somente válidos quando coincidentes com aqueles primeiros[37].
Destarte, o assunto há que ser devidamente ponderado, a começar pelo lançamento, normalmente encartado junto às competências vinculadas[38] – para as quais inexistiria “apreciação subjetiva alguma”[39] –, bem como para os atos emanados dos Tribunais Administrativos – aqui já cientes quanto à inexistência de atos plenamente vinculados ou completamente discricionários[40] –, mas também que findo o procedimento e iniciado o processo administrativo[41], incide, inexorável a ampla defesa[42] e o correlato dever de observância de todos os pontos do contraditório, inclusive quanto à justiça e validade[43] do pressuposto de direito, o que, por si só, afasta a figura da revogação – alheia a tal objeto[44] –, mas não a ideia de discricionariedade – desde que respeitado o Ordenamento Jurídico[45] –, o que, porém, não pode ser reduzido a um mero juízo de oportunidade e conveniência da Administração[46] e, finalmente, que a invalidação – forma de extinção determinada pela observância do princípio da legalidade[47] –, expresse atributos tão vinculados a ponto de impedir interpretações diversas por parte dos julgadores[48], o que se admitido seria inconstitucional[49], porque importaria em ofensa não apenas aos plano de justiça e validade, mas também o da eficácia[50], pois obstaculizado o exercício da competência – exercida através de composição paritária, aliás –, dos Tribunais Administrativos.
 
A questão, pois, parece mais diretamente ligada aos atributos da legalidade, cuja compreensão, porém, não pode ser afastada dos demais princípios a ela aplicáveis e, dentre eles, os da soberania popular e da cidadania[51] esse último, a um só tempo, fundamento e requisito da Ação Popular —, mas também dos cânones da lealdade e da boa-fé[52], o que, por si só, repele o dolo[53] mas não impede a observância dos critérios ético-jurídicos do ato administrativo[54], esses influenciados pela moralidade administrativa, valor que representa uma conquista histórica no controle do desvio de poder[55] ou, mesmo, um importante traço distintivo entre o Estado de Direito e o Estado de Direito Democrático[56], sem que isso, necessariamente, implique em indevida intromissão nos aspectos de conveniência e oportunidade e, pois, prejuízo à separação de poderes[57], o que, aliás, sugere um paralelo entre a ilegalidade-lesividade-requisitos e a validade-justiça-critérios e, pois, que a justiça-critério traduz um conceito constitucional determinado, não relacionado à moral comum, mas a moralidade jurídica[58], à ética do ordenamento, daí porque sua ofensa traduz tanto ilegalidade, quanto lesivividade.
Dito de outro modo, diferencia-se a situação na qual o “conteúdo, sentido e alcance da norma jurídica”[59] seja determinado e, assim, constatada sua ofensa, cabível a Ação Popular; daquelas outras para as quais se faz necessário “interpretar o conceito e [...] trazê-lo à zona de certeza”[60] e, pois, presente a dialética jurídica — aqui evidenciada pelas visões diversas, quando não antagônicas, do fenômeno tributário[61] —, o que se afigura mais sensível diante da controvérsia acerca da constitucionalidade, o que não “significa, porém, que um ato que viole a Constituição não possa ser objeto de [...] Ação Popular”[62] — inclusive face ao quanto decidido na via de exceção pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal[63], sem prejuízo ao controle concentrado[64] —, o que, em linha de coerência, afasta a exegese exclusivista — porque danosa a interesses legítimos, conquanto opostos —, e, assim, prestigia os parâmetros veiculados pelo ordenamento — o que se revela útil à segurança jurídica —, através da compreensão da legalidade pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade[65], bem como da soberania popular e da cidadania — essa face à boa-fé objetiva, exercida mediante a observância dos direitos e deveres correlatos —, mas também pela moralidade administrativa vista sob o viés dos critérios de justiça, validade e eficácia do sistema e, pois, fator indispensável à construção — e, mesmo, à evolução —, do Estado de Direito Democrático brasileiro.
Posto isso, conclui-se que a Ação Popular Tributária é direito-garantia constitucional fundado nos princípios republicano e da soberania popular e, pois, instrumento processual destinado ao exercício direto da cidadania — de caráter individual —, embora voltado à defesa de interesses difusos — sob acepção dos interesses primários —, para a anulação de atos que em ofensa à legalidade, porque ausente ou desprezado pressuposto de direito correspondente, causem prejuízo ao erário princípio da indisponibilidade dos bens públicos —, ou, então, que face à afronta aos princípios e normas do Sistema Constitucional Tributário — sem prejuízo ao controle de constitucionalidade —, implique em desrespeito ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, ou, ainda, em menosprezo à moralidade administrativa, cujos aspectos éticos jurídicos devem ser observados no âmbito das relações jurídico tributárias.
 
Fonte - Conjur

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