Viola o dever de boa-fé contratual vender quotas sociais de uma empresa com passivo trabalhista oculto, impossível de detectar pelo relatório de riscos apresentado antes da operação comercial. Assim, se comprovado o prejuízo do comprador, é dever do vendedor indenizá-lo em danos materiais.
O entendimento é da 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, confirmando sentença que condenou os ex-controladores de uma empresa de mão de obra e vigilância a indenizar os novos donos, que arcaram com um passivo não previsto no contrato de cessão de quotas sociais. O risco trabalhista da empresa incorporada, avaliado em R$ 30 mil, acabou se transformando em R$ 300 mil — o que deu margem ao litígio judicial.
O relator da apelação, desembargador Paulo Sérgio Scarparo, constatou que o escritório de advocacia que elaborou o relatório da due diligence legal para os compradores se baseou em documentos e relatórios fornecidos pela própria empresa que gerou o passivo. E, pior: sem averiguar a veracidade destes documentos.
Conforme historiou o relator no voto, o problema apareceu após a celebração do contrato de incorporação, quando a perícia constatou, na ação trabalhista, o preenchimento irregular (efetivado por terceiro) dos cartões-ponto do reclamante.
"Ora, ao contrário do defendido pela parte apelante, cuida-se, sim, de preenchimento fraudulento dos cartões-ponto. Independentemente da origem dessa irregularidade (se decorrente de negligência — com os deveres de guarda e registro — ou de má-fé do empregador), o fato é que se tratava de falsos registros do horário de início e final de jornada daquele empregado. Daí adveio condenação ao pagamento de diferenças de horas excedentes à jornada de 44h semanais (fl. 261), com a posterior celebração de acordo, no valor de trezentos mil reais", escreveu no acórdão.
Antes de fechar esta operação, como é de praxe no mercado, os compradores contrataram um trabalho de due diligence, com escritório de advocacia, para se inteirarem do real status jurídico-contábil da empresa. Nesta "varredura", empreendida por advogados e consultores, foram encontrados 19 processos ativos, dentre os quais a ação reclamatória trabalhista que deu ensejo à presente ação indenizatória. As partes acertaram, segundo a inicial, que as "contingências trabalhistas" não seriam repassadas aos novos controladores.
Apesar deste acerto, os autores foram chamados à Justiça do Trabalho para acerto de contas com um ex-funcionário da Anchieta, que ajuizou reclamatória trabalhista. Resumo da ópera: os autores, como sucessores, tiveram de arcar com uma condenação trabalhista no valor de R$ 300 mil. A sentença foi proferida pela 12ª Vara do Trabalho de Porto Alegre em 15 de outubro de 2014, dois anos após o ajuizamento da ação trabalhista.
Assim, os autores pediram a condenação dos réus em danos materiais no valor de R$ 300 mil — ou, alternativamente, à quitação integral do acordo firmado na ação trabalhista 0001420-51.2012.5.04.0012.
Citados pelo juízo, os réus contestaram a ação. Em razões de mérito, alegaram que o processo de due diligence foi conduzido por advogados, contadores e auditores contratados pelos próprios autores. E, no documento produzido por esta auditoria, foram constados 19 processos, incluindo a referida reclamatória trabalhista. Ou seja, os técnicos contratados para a auditoria examinaram e sabiam da existência de todas as ações judiciais. Por fim, destacaram que as "contingências trabalhistas" não foram incluídas nas negociações porque aquele processo já integrava o relatório da auditoria contábil (due diligence). Pediram a improcedência da ação.
Na fundamentação de sua decisão, a juíza Rute dos Santos Rossato narrou que, decorrido um ano após aquisição da empresa, a sentença trabalhista reconheceu a invalidade dos cartões-pontos do ex-funcionário da Anchieta. E, como resultado, o passivo trabalhista pulou de R$ 30 mil para R$ 300 mil — valor 10 vezes maior que a previsão posta no relatório.
Para a juíza, a conclusão da auditoria realizada na empresa não contemplou a realidade dos fatos apresentados pelas demandadas, pois a reclamatória trabalhista movida pelo reclamante constatou, através da perícia documental, que os cartões ponto foram adulterados — o que gerou "invalidade/ineficácia como elemento de prova". E esta irregularidade, que repercutiu na indenização trabalhista paga pelos autores demandantes, foi ocultada na data da transação societária.
Conforme a julgadora, a fraude com os cartões-ponto — constatada no período de 1991 a 2012 — ultrapassou os limites da probidade administrativa, ferindo o artigo 1.146 do Código Civil. Registra o dispositivo: "O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento."
Em arremate, destacou que a cláusula oitava do contrato entre as partes prevê, expressamente, a responsabilidade dos vendedores réus pelo passivo oculto. Este, no contrato, é considerado como "todo e qualquer prejuízo, perda, dano, despesa ou custo (...) resultante da inexatidão ou invericidade de qualquer declaração feita ou garantia dada pelos vendedores".
Fonte - Conjur
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